O último jogo do Brasil eu assisti no bar do Balboa, lá no centro da cidade. O tempo estava bom, tanto aqui como na Rússia, e o movimento nas ruas era enorme. Jovens, adultos e crianças fantasiados com camisas da seleção de futebol, pinturas no rosto e cornetas barulhentas mais nos lábios do que nas mãos, infelizmente. Aproximei-me do balcão, cumprimentei a todos e pedi uma cerveja – invariavelmente geladíssima, como eu nunca conheci noutro lugar. Se querem um bom conselho, quando...
O cara só pode ser um otário. Ou não teria postado aquela foto idiota dele comendo uma porra de um macarrão gourmet que ele mesmo cozinhou, tomando um vinho com notas de sei lá que merda e que deixou ele com uma cara de idiota! Mais que o usual. E o pior é que eu tive uma foto desse mesmo otário-idiota na cabeceira da minha cama, durante anos. ANOS! De um lado meu, a foto de nós dois sorrindo e, do outro, o próprio otário. E eu achava que era feliz. Eu, a senhora otário-idiota. Talvez eu até...
O gordinho bom fim de semana trabalhava em uma das portas da cidade (talvez a única) e, todas as sextas-feiras (provavelmente, todos os dias eram sextas-feiras), quando as pessoas, nas idas e vindas, o encontravam (situação inevitável), ele dizia: bom fim de semana. O gordinho era craque nisso, como se tivesse sido concebido especialmente pra essa função. Passava a mão no cabelo, estufava o peito, encolhia a barriga, o sorriso vinha quase, mas quase mesmo, naturalmente, a sobrancelha era alta...
As primeiras coisas que fiz foram sair das redes sociais, entrar no meu correio eletrônico, enviar as minhas mensagens para a lixeira e esvaziá―la. A seguir, suprimi o meu site do servidor, apaguei os arquivos que tinha enviado para nuvens, cancelei as minhas participações em blogs, exclui as minhas inscrições de fóruns, formatei o meu computador, coloquei as minhas chaves USB e os meus CDs e DVDs dentro de um saco e fui até o quintal, acender uma fogueira. Uma vez que o lume pegou e...
Preocupava-se muito com a imagem. Era instalador de TV a cabo.
A sala de estar estava às escuras. A mucama não tivera tempo de preparar a lareira, tirada da cama às pressas como fora. O lampião de querosene nas mãos de Ezequiel, o capataz, era a única fonte de iluminação. As sombras que dele se projetavam produziam desenhos sinistros no teto, nas paredes e nos rostos dos quatro residentes trêmulos de medo. E mesmo nunca tendo visto uma expressão tão transtornada no rosto de papai, Justina ainda foi capaz de engolir em seco, muda de pavor ante a visão...
É verdade, nunca vi teu rosto, tua pele, teus olhos. Mas o que sinto é algo que tenta se ajeitar nas minhas frestas e acaba vazando. Primeiro, pelos olhos: o líquido a escorrer rosto abaixo e salgar os lábios. Segundo, pela boca: as palavras trôpegas de um homem que nunca falou com alguém cuja carne é fruto da carne dele. Mas eu falo. Falo e sei que tu me escutas. Sei que reconheces na minha voz o veículo do afeto. Tua mãe está deitada no sofá, exibindo pra mim a parte de fora da tua casa...
Acordou antes do despertador, como se tivesse cravado no cérebro: cinco e meia. Não precisou conferir, nem recordar a sequência: abrir a janela com a ponta dos dedos, usando a palma da mão para abafar ruídos, sabendo que ao erguer a vidraça sentiria a madeira subindo, subindo no mesmo trilho há anos, deslizando resignada; depois apoiaria os cotovelos em cima do batente branco esfolado. No quarto escuro e ainda frio, o silêncio cortado por um suspiro gordo e paciente, porque agora era hora de...
Tem gente que nasce pra fazer o som e gente que nasce pra ouvir. Eu me contento em ouvir. Embora já tenha feito. Faz tempo, na época em que eu tinha uma camiseta igual a do Kurt Cobain na foto de uma revista com a letra traduzida de Territorial Pissings. Quase ninguém se ligava na ilustre sósia que virou o meu uniforme, mas eu não apenas a vestia, eu a carregava feito um patuá. Um rolê com ela e eu já não pertencia mais ao mundo ordinário. Quer dizer, eu continuava nele, mas com o encanto de...
Ele se sentiu como se a cabeça tivesse sido separada do corpo, apenas isso, ou isso. A impressão era de uma experiência única! De que nunca havia passado por isso antes, imaginava que não. A cabeça, em uma cama, uma bicama, sofá-cama ou coisa do tipo, estava encostada em um travesseiro e procurava com os olhos (que pareciam alegres e saltitantes), na beirada dos buracos das ventas, a outra parte do corpo que estava estirado no chão. Guilhotina, pensou. Guilhotina, guilhotina, guilhotina...
Apenas de cueca entrou no quarto iluminado por uma réstia de luz que atravessava pequenos buracos do blecaute. A noite era quente. Suava no peito e axilas. Parou diante da cama observando a mulher dormir. A camisola curta deixava a calcinha à mostra. Uma peça pequena, com diversos ursos sorridentes, vermelhos, gordos, que flutuavam de braços abertos. Mesmo sentindo que havia vida abaixo da linha da cintura, absorvido pela paisagem, não desejou sexo ou outra aventura. Tinha os pensamentos...
Numa noite fria e chuvosa em Londres, Mr. Bruno Byron estava em seu escritório, em um velho prédio no centro da cidade, quando de repente o telefone toca. Ele atende no primeiro toque, sua voz sai rouca, com timbre forte. Fazia tempo que não recebia ligações inesperadas assim. Do outro lado da linha ouvia-se apenas a frase: "Mr. Byron, por favor me encontre na rua Prince, número 20. Essa rua fica ao lado da Tower Bridge. Peço que chegue em vinte minutos." Byron era um jovem detetive...
“No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra era quadrada, branca e vazia; e havia um estúdio sobre a face do abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das tintas. Disse Deus: haja cor. E fez-se cor. Viu Deus que a cor era boa; e fez separação entre as cores com um prisma. E Deus me chamou de mulher, e você de homem. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro”. “Por que ele começou com você?”, o homem perguntou. “Porque eu estava do lado esquerdo da tela”, a mulher respondeu.
Ainda estava com o revólver nas mãos. Um calibre quarenta e cinco que herdara de seu pai. Destinado a criar desgraças. A única coisa que se esperava dela era tirar a vida dos outros. Com sorte escapava-se. As mãos tremiam. Não era isso que queria quando abriu os olhos para o mundo e deu seu primeiro grito, chorando. Nem seus pais, nem ninguém desejava isso. Em instantes sua vida inteira passava diante dos olhos, rapidamente como as janelas do metrô. Tentava acompanhar, mas estava ficando cada...
<< No princípio era uma ideia, um sentimento, algo transparente e pesado que flutuava entre nós. No princípio era uma conjetura, uma alma sem corpo, um pensamento que não existia e que precisava, urgentemente, amar. No princípio... Ele não terminou de ler o meu segundo parágrafo e me colocou de volta na estante, sem olhar para trás. Palhaço. Sabia que mais cedo ou mais tarde chegaria o meu momento, e, de qualquer maneira, estávamos para fechar. “Palhaço.” ― Então? O cara não gostou...
Caminha pelo centro da cidade. Corredor polonês. Videogame. Fliperama. A rua é estreita. Cidade antiga com cara de moderna que envelheceu. Caminha espremido e emparelhado por prédios sem marquises. Repito: prédios sem marquises. E os ares-condicionados caem. Um a um. E se estatelam no chão, próximo, próximo, próximo, muito perto próximo dele. Ele segue sem desviar ou procurar abrigo. Aliás, abrigo não há, precisa contar com a sorte. Olhar fixo. Na frente. Não há como voltar. Apenas segue...
Então é hoje tu vens? É hoje que vens dividir teus vãos com o mundo? Pelas dores que sinto desde a madrugada, é muito provável. Ah, se dependesse só de mim, tuas dores seriam homeopáticas, unicamente pra que soubesses que a vida não é uma propaganda televisiva. Mas não tenho tamanho poder. Em relação a ti, meu papel é o da atriz que prepara a cena pro protagonista encantar a plateia. Quantas conversas tivemos durante o tempo em que eu te produzia? Agora, amor, é nossa última antes de saíres...
Fazia provavelmente duas horas que tínhamos saído de Recife, e pouco mais de vinte minutos que decolamos de Vitória. Sinceramente, eu nunca gostei de voos com escalas, a viagem fica muito mais cansativa. Contudo, trata-se de um Vickers Viscount, talvez, o avião mais confortável de nossos tempos. Pelo menos para mim, que, do alto de meus vinte e três anos, já havia experimentado o Scandia. O Viscount vibrava pouco, e quase não se percebia o som de suas hélices. E essas grandes janelas ovais...
“Espero que não distorçam muito aquilo que ele tem estado a dizer”. Sentado na cadeira do almirante, na minha cadeira, meditava sobre o planeta azul à minha frente. Era a primeira vez que interferíamos no destino de uma raça alienígena. Foram duas décadas de discussões. Desde a criação da Constituição Universal, jamais havíamos revogado uma de suas leis, até que, enfim, ignoramos o Parágrafo Número Dois. Os nove sistemas da Confederação haviam chegado a um acordo. Todos acharam que seria...
Pois, minha ideia era simples: diria a ele que as meninas me mandaram chamá-lo. Estavam esperando, umas três ou quatro, tomando banho peladas no açude grande. Claro que ele iria, o desgraçado. E assim fiz. Não demorou cinco minutos e lá íamos nós, em passo ligeiro, rumo à fazenda. No caminho não resisti e já dei um sopapo na cabeça do velhote. Pois não é que o degenerado fez exatamente o que não devia? Disse - “para, que eu sou autoridade”. Daí mesmo que não parei. Não senti nenhuma pena...
No acinzentado do céu da Ucrânia, exatamente o mesmo acinzentado do céu do país de Jonilson e isso o surpreendeu porque ele nunca estivera noutro país e sempre duvidou que o céu tivesse a mesma cor no mundo todo, pequenos pontos pretos paridos por uma grande explosão se transmutaram em pedaços fumegantes de metal, malas, mochilas, poltronas flutuantes, corpos inteiros, corpos em pedaços e pedaços de corpos, e não se tratava de um pesadelo porque também os gramados ucranianos se mostravam tão...
A noite só estava começando. Encontraram-se após o trabalho. Em cumprimento formal. Um beijo no rosto. Um sorriso. Uma rápida discussão sobre aonde ir. Sugestões e ideias tentando adivinhar o gosto do outro, impressionar com as sugestões e agradar. Foram a um bar de jazz. O acesso um pouco difícil, mas valeu a pena. O lugar lembrava um bar em Cape Town que ele costumava ir. Sentiu falta do baseado depois de ouvir Coltrane. Lembrou-se do seu amigo Africano que sempre tinha uma história...
Caminhavam apressados e ofegantes pela mata. O desejo os impulsionava. Namoravam há alguns meses e a libido adolescente tornavam os corpos brasis; nada importava a não ser eles mesmos. Eram escravos do Conde Barcelos, talvez o maior produtor de café da Região Serrana Fluminense em 1791. A vila era próspera. Contava com um comércio aquecido, uma locomotiva que circulava por uma linha férrea implantada pelo Conde, e a melhor casa de moças-damas das redondezas. O longo vestido atrapalhava a moça...
Então? Chocado com a revelação? Cortado fininho, seco, à milanesa, bem frito. Não é uma delícia? Falo isso porque outro dia ouvi que deveria ousar mais na literatura. Isso calou fundo. Sou um escritor e normalmente gostam dos meus textos, apesar de nem sempre serem entendidos. Não ligo e por isso a vida é melhor do que difícil. Mas a verdade é que a crítica me incomodou. Preciso entender para começar. O que é ousar mais? Contar que gosto daquela carne vermelha, quase negra, gelatinosa, é uma...
Agora que a noite desabara por completo sobre a serra, eles vinham em ritmo acelerado, quase correndo, para fugir do frio repentino. São quatro: três homens e uma mulher, e caminham com dificuldades pela trilha escurecida. Alguns passos à frente, Ricardo vai desbravando a mata fechada, marcando terreno e abrindo passagem aos outros que seguem atrás. A estrada é dura, difícil. O caminho de terra batida, mal iluminado, misturado à bebedeira do dia, tornava ainda pior a tarefa de voltarem ao...
Por mais que sempre tenha odiado a rotina, as mesmices do dia a dia, desenvolvido uma de suas manias de nunca voltar pelo mesmo caminho, a vida dele se tornou uma rotina, que se expandiu a todos os momentos do seu dia. Ainda tinha algum dinheiro que acumulou na vida, pois sempre foi precavido, e seu pai lhe deixara um pouco mais e a casa de praia onde hoje passava seus dias. Pela manhã acordava e saia para caminhar. Sozinho. Não tinha cachorro ou gato, se revoltava com o quanto se gasta com...
Era uma casa agradável, nas cercanias de Lumiar, em Nova Friburgo. Havíamos nos mudado há cerca de dois meses para a pequena vila no interior do Estado, em busca do sossego que não se vê numa cidade grande como o Rio de Janeiro. O lugar parecia parado no tempo: os morros ocupados por plantações de banana ou inhame, as cachoeiras, a fumaça subindo em torvelinhos nas chaminés dos fogões à lenha e os passeios a cavalo davam ares coloniais muito bem explorados pelos donos das pousadas. Depois de...
Não sei ao certo quantos são; talvez quatro ou cinco. Meus olhos teimam em ficar embaçados, talvez receosos de que isso seja verdadeiro. Ou talvez eles prefiram ocultar o que não são capazes de enfrentar. São quatro, agora está claro. Papai e mamãe de um lado, Marta e Ricardo do outro. Os oito olhos como se fossem facas apontadas para mim. O ambiente, mais escuro que nas noites anteriores, ostenta alguns enfeites: bexigas roxas à porta e uma fita avermelhada que, com aparente desprezo, cruza...
A tarde estava morna. Lenta. Um leve vento batia no barraco e morria na terra avermelhada, exposta pelas chuvas fortes dos últimos dias. Preciso fazer o muro de arrimo ele pensava, mas o dinheiro nunca sobrava. Será mais barato plantar mais árvores pelo quintal, pensou. A grama está alta — outro pensamento. Mas faltava ânimo. O tempo em abundância não lhe dava energia. A aposentadoria não era tudo aquilo que imaginava, ainda mais com pouco dinheiro. Foi até seu banco de praça. Sentou. Colocou...
Muito antes de ser possível um roteiro incestuoso entre o tempo e a escrita – ou isso que chamamos, de forma mais ou menos desleixada, de História –, um jovem rapaz encontrou um velho riacho, cujo cheiro abrandou-lhe a angústia. Sentou, próximo a uma das margens, e começou a procurar, naquele silêncio intermitente, uma conexão qualquer, uma apenas, que freasse o seu desespero. Não havia, ainda, como claro está, palavras, esses ousados instrumentos de invasão, com os quais borramos a...
Os mares eram azul-esverdeados e com poucas vagas. Tão belos e magníficos como em uma canção ou pintura. O vento noroeste era fortíssimo e impulsionava com vigor o navio, que estava a todo pano. Eram ao todo trinta homens, contando o cozinheiro e o capitão. Pacheco era o segundo homem do brigue, mas assumira o comando após o desaparecimento de seu irmão Arnaldo. Tinha por volta de quarenta anos, olhos e cabelos castanhos e uma espessa barba – resultante de vários dias no mar – um tanto...
Era uma vez. Só uma vez. Mas Alice não foi capaz de resistir e agora, com os pés roçando o meio-fio, estilhaça a ilusão entre os poucos dentes que não abandonaram a gengiva. O fel que brota no céu da boca faz seu corpo úmido estremecer e ela se deita sobre si: na posição para a qual precisa retornar. Da festa, comemoração do término do ensino médio, escoava música, álcool, mãos agitadas e os poderes ilimitados de quem desvenda o rosto do prazer. O movimento dos corpos era a silhueta do...
Dizem que os habitantes do deserto são aqueles que mais acreditam em Deus, porque: por terem sido mais expostos ao silêncio, acabaram por ouvir mais o universo e por não terem tido muitas cores que os distraíssem, acabaram por olhar com mais profundidade para as coisas. Contudo, não é o fato de acreditar em algo que deveria definir uma pessoa, mas o que cada uma dessas pessoas faz sem esperar por um retorno. Um ateu que ajude alguém tem muito mais valor que um crente que faça algo à espera...
Segundo movimento (adagio) A metade de seu corpo estava soterrada. Ahamarã antecipou a tempestade e abrigou-se a tempo num rochedo. Entretanto, como a tempestade fora violenta e durara horas, a mesma rocha que o salvara, servindo-lhe de refúgio, impedia-o agora de se mover, pois uma grande quantidade de areia fora represada ao seu redor. Intempérie bizarra. Jamais havia visto um remoinho tão devastador e repentino como aquele. Toda sua noção de sobrevivência ficou reduzida a correr...
A areia do deserto escorria, recordando uma ampulheta sem fim, mudando dunas de lugar e soterrando, continuamente, impérios vencidos. Não existe nada mais forte que o vento, dizem os tuaregues, pois o sol nasce e morre, a lua brilha e se esconde, mas o vento, fraco ou forte, nunca deixa de soprar. E é nesse mar chamado deserto – região inóspita para alguns, lar para outros – que começa a nossa história.Ele cavalgava só, enrolado num turbante; sem pressa e sem destino; sem nada nos bolsos e...
Ouviu alguém chamando lá fora, mas nem se importou. Continuou deitado em sua cama, se confortando com o calor agradável das manhãs sob as cobertas. Alguns raios de luz vindos de uma fresta entre as cortinas mal fechadas pousavam sobre ele. Lá fora, o sol era escaldante, mas Deodato não se incomodava em seu quarto. Aliás, não se incomodava com muitas coisas, há muito tempo. O lixo se acumulava nos cantos e a louça transbordava na pia, ainda com restos de alimentos, estragados, que atraíam...
Minha namorada e eu vivemos em Lausanne, na Suíça, e nosso apartamento fica na frente do Museu de Arqueologia e de História da Place de la Riponne. Aliás, não é apenas a fachada renascentista do Palais de Rumine que podemos ver de nossa varanda, mas também os Alpes franceses, o Lago Léman e o campanário de uma catedral do século XIII. Uma vista de tirar o fôlego. Clichê?! Vários! Tenho tirado inúmeras fotos dessa praça e sei que jamais conseguiria repetir o mesmo clichê em dias diferentes...
Acordei por volta das sete horas. A contragosto, é verdade. Tomei um banho bem quente - daqueles em que a pele fica avermelhada - escovei os cabelos, pus um vestido chemisier curto negro e mocassins pretos, e fui tomar café. Meus pais já tinham saído para trabalhar e nem saberiam se eu fui à escola ou não. Acho que não se importavam muito com isso, aliás. Como filha única, sempre tive tudo que quis. Nenhuma de minhas vontades era contrariada. Se isso foi bom? Não sei. Acho que sim, mas...
“Eu já te falei, André? Que quando a Aninha voltar, nós vamos juntos passear no parque? Aquele parque novo, no centro da cidade, sabe? A Aninha sempre gostou de parque. E a Maria Rita também; a minha pequenininha. Um dia, pouco antes de ir embora, ela me falou assim: Me leva, pai? Naquele parque novo, no centro da cidade? A gente vai! Assim que elas voltarem, a gente vai. Também, não sei o que deu na Aninha de ir embora assim, de repente, parece que fugindo até. Como se isto aqui tivesse...
José da Silva – nome comum para uma pessoa incomum – acordou sobressaltado pelo sentimento de estar sendo observado. Tivera uma noite de sono profundo, mas, às dez da manhã daquele primeiro domingo de 2007, foi como que arrancado bruscamente dos braços de Morpheu, ao despertar certo de que teria sido capaz de surpreender dois olhos furtivos a lhe observarem, nu, sobre o leito. Erro seu. No seu quarto de poucos móveis e paredes brancas, com uma janela que dava apenas para a praia do Flamengo...
Havia chovido o dia inteiro em Friburgo. Os relâmpagos cruzavam o céu como em uma demonstração da ira divina. Não que fosse muito comum Ele descarregar sua cólera, mas é que o mundo andava muito mal comportado. A tão famosa fonte da vida desabava fortemente fazendo as pessoas caminharem apressadas pelas ruas à procura de abrigo, os carros, na medida do possível. Em alguns lugares, a água invadira completamente as calçadas e, de certa forma, a soma disso tudo me ajudou bastante. Sou taxista e...
O ônibus chegou num repente, expelindo uma nuvem demorada de poeira e fumaça. Dentro, os poucos passageiros acordados, enfastiados por tantas horas de viagem, viram surgir primeiro a cabeça magra do homem, depois o corpo seco e ossudo, metido num paletó puído, da mesma cor estéril do restante da paisagem. Em seguida subiram as duas meninas. Fez-se um gemido demorado, o motor deu um tranco e o ônibus partiu, sacolejando pela estrada pedregosa. Sentaram-se em fileiras paralelas, o homem...
Cadê a Tereza? Faz tempo que ela não me dá banho. A mão da Tereza era leve, parecia o beija-flor que cheirava as flores da mamãe. Ela me deixava tão cheiroso que um dia quase o beija-flor veio me beijar. Ele não veio, mas a Tereza me beijou. Ela me beijava e abraçava e depois beijava de novo. E eu desenhava o cheiro dela enquanto ela passava a mão no meu rosto, temos que fazer essa barba hoje, Benjamim. Tá igual espinho. Espinho branco, onde já se viu? De manhã, à tarde e à noite ela me dava...
Gostávamos da casa porque, além de espaçosa e antiga (hoje que as casas antigas sucumbem à mais vantajosa liquidação de seus materiais), guardava as recordações de nossos bisavós, o avô paterno, nossos pais e toda a infância. Habituamo-nos, Irene e eu, a permanecer nela sozinhos, o que era uma loucura, pois nessa casa podiam viver oito pessoas sem se molestarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete, e pelas onze eu deixava a Irene as últimas peças por repassar e ia à cozinha...
As coisas não iam nada bem em Abaruna, pequena cidade encravada na serra fluminense. Um lugar aprazível, de clima ameno, com rios e cachoeiras onde muitos mergulhavam a fim de restabelecer suas forças. Com essas qualidades, tinha ganhado o apelido de “Pedaço do Céu”, exibido no pórtico da cidade. Sua economia girava em torno da criação de bois, porém, os mais pobres criavam cabras. Sepúlveda era um deles. Havia se mudado para lá há um ano com sua esposa, buscando uma vida melhor. Levantava...
Antônio atravessou a Rua Nossa Senhora de Copacabana e parou diante de Maria Pilar. "Eu te amo." Maria Pilar deu dois passos para trás e sorriu, e sei que foi por ter sentido certo nervosismo. Não podia ser. Ela não poderia deixar que aquilo acontecesse. Era uma mulher independente e não poderia permitir que agitassem o mar tranquilo de sua existência. Olhou para trás e correu até a esquina, entrando no primeiro táxi que conseguiu. O taxista dirigiu quase durante meia-hora e parou quando ela...
A chuva diminuía, e fazia frio. Deitado na areia gelada, o corpo apoiado de lado, a cabeça pendendo para baixo, eu via as ondas ressacadas rebentarem à minha frente com sombria e fingida ansiedade. Desilusão. Nem as ondas, nem os ventos daquele final de outono frustrado poderiam me salvar: Era minha vida que rebentava! Luíza, tão fria, certamente me diria: você tem propensão para o drama. E para a angústia desmedida. (Além de fazer versos horríveis, como este: Luiza, tão fria, certamente me...
Sempre fui bem com as mulheres. E olha que não tenho dinheiro e nem sou tão bonito assim. Tudo bem, vá lá, eu sou bonito. Melhor do que isso. A minha experiência adquirida em minha adolescência é o melhor em mim: sei tudo sobre as mulheres, o que elas gostam, o que elas querem e tudo o que você possa imaginar. E, na verdade, é a isso a que se deve o meu sucesso com elas, e não ao meu rostinho bonito.Partindo desse princípio, procurei um emprego em que tivesse que usar uniforme. É, elas adoram!
Ele acordou, e a escura realidade seus pensamentos retornaram. Despertar de manhã e não sentir a diferença entre abrir os olhos e deixá-los fechados. Limitou-se a tocar com a ponta dos dedos os ponteiros de seu relógio de pulso e recordar-se de que era domingo. Ele e sua esposa teriam todo o dia para aproveitar, se a meteorologia tivesse acertado. Procurando-a, passou a mão no lençol de seda e lembrou-se dela na noite anterior. Uma alma que sempre procurava o mesmo busto, assim funcionava a...
Na casa de minha avó, havia um quintal antigo e comprido, salpicado por uma constelação infinita de árvores. Chamava-se casa de minha avó porque meu avô tinha morrido faz tempo, quando eu ainda não me lembrava das coisas. À direita, a casa estendia-se até quase a metade do terreno. Depois, havia o quartinho de guardar ferramentas e uma goiabeira quase esquecida, lá no canto, longe de tudo. Mais para o fundo, ficava o rancho dos empregados e um cercado onde moravam galinhas, marrecos, patos...
O escritor encostou sua caneta na folha em branco. Decidiu, por fim, escrever a história de um amigo, de um amigo a quem não via havia muito tempo. Ele, então, começou assim: Era triste ver um antigo companheiro naquela posição engraçada, agachado e sujo de terra. Ver que, depois de tudo o que haviam vivido juntos, ele agora se resumia àquilo: um louco a cavar um buraco com suas próprias mãos.Começara aquele espetáculo havia três dias. Informou o empregado da quitanda, e, por causa do tipo...
Equiparo meu trabalho com o de desmantelar bombas. Devo aprender tudo sobre nitroglicerina e explosivos plásticos. Tenho de saber qual fio não cortar e não explodo um engenho desde os tempos da Academia, quando tive de fazer uma grande faxina no laboratório. Ao escrever sobre a alegria, procuro dar direção à prosa, sem me entusiasmar. Não devo pensar pelo leitor, e exagerar nos adjetivos ou nos advérbios pode ser perigoso.Ao escrever sobre a tristeza, são meus deveres transportar as...
Estava trancado nesta espécie de quarto há muito tempo. Nem se lembrava o quanto. Talvez... quatro meses? Esse era o tempo que ele achava que estava ali. Apesar disso, sentia-se confortável. A temperatura era sempre agradável, e sempre tinha o que comer. Não havia janelas no quarto e por conta disso não via a luz do sol. Não tinha muito a noção de quando era dia ou noite, exceto quando ouvia vozes do lado de fora. Mas não era isso que lhe importunava. Ele sabia que tramavam seu fim do lado de...
— Meu filho — meu pai disse enquanto amarrava a ponta da corda no gargalo de uma garrafa — aqui dentro você encontrará aquilo de que você precisa. — Eu... — Deixe-me terminar. Abaixei o braço e segui seus movimentos, com a esperança de que aquilo fosse alguma brincadeira. Não era. — Aqui dentro está o antes, o agora e o depois. Aqui dentro está a sua paz. — Eu... — era impossível resistir. Meus lábios estavam secos. — Escute. Meu pai puxou a corda com força...
Sirenes ligadas. Homens, mulheres e crianças chorando, gemendo de dor. Um cheiro forte de éter. Em um hospital vê-se o que quer e o que não quer. Se ao menos houvesse muitos médicos para atendê-los... Não, não havia. Adametropos trabalhava há quase vinte anos como enfermeiro. Muitos pacientes já haviam sido cuidados por ele. Suas mãos precisas efetuaram uma centena de curativos, aplicaram injeções mais ainda. Não era casado, não tinha filhos. Quase uma vida inteira dedicada a pessoas...
Mas aquelas crianças ali, no meio da rua, aqueles meninos armados, o que estarão fazendo aqueles meninos? Aqueles guris descalços, vestidos com capas e máscaras, empunhando espadas de plástico, eram soldados? Eram guerreiros? Uma criança igual às outras crianças: companheira de fantasias e brincadeiras, de corpo magro e tronco nu, mas com sotaque e sentidos diversos.Os garotos haviam formado um corredor e, dentro dele, Paulo Jorge se contorcia. Batiam sem piedade. E eu, junto a eles...
Ele levantou os olhos para o céu, mil coisas acontecendo, mas não prestou atenção em coisa alguma. Nada fazia sentido. Por um instante esqueceu-se até de seu nome. Tinha família, mas era domingo, e ela o tinha abandonado em seu jardim, sozinho, olhando para o céu. Foi ao banheiro. Nada. Voltou ao jardim e olhou novamente pro céu. Desta vez, Deus lhe disse algo. Porém, ele não se lembrou. As flores ficaram distorcidas e a grama estava mais verde do que nunca, mas nunca havia tomado LSD...